Do documento à intervenção cidadã: os panfletos de um cidadão famalicense nos repositórios digitais
Palavras-chave:
Cidadania, Repositórios Digitais, Vila Nova de Famalicão, Panfletos, História localResumo
Introdução
Este trabalho pretende dar a conhecer e discutir um caso único e bastante incomum do ponto de vista documental e de intervenção social, que surgiu nos anos 20 a 40 do século XX, no concelho de Vila Nova de Famalicão, cuja biblioteca e arquivo municipal são garantes desta memória disponibilizando nos seus repositórios digitais este património documental, confirmando o valor dos mesmos e tornando estas instituições testemunhas do direito à cidadania. O trabalho pretende, também, afirmar a importância do património documental salvaguardado nos repositórios digitais do município e que dizem respeito à história local.
Do ponto de vista documental, trata-se de uma coleção de panfletos impressos, em suporte papel, de autoria de um homem peculiar - José de Araújo Carvalho (1866-1945), que foram destinados à distribuição gratuita pela população do concelho referido. Do ponto de vista social, são documentos de intervenção cidadã, cujo autor era um indivíduo comum e pouco letrado, mas cujas ideias de intervenção social nos deixam surpresos pela profundidade e atualidade como as aborda e como ele intervém na comunidade enquanto cidadão.
Método
Foi realizada uma abordagem que começou pelo levantamento dos múltiplos panfletos do autor referenciado, nos dois repositórios digitais, no Arquivo Municipal Alberto Sampaio e na Biblioteca Municipal Camilo Castelo Branco, instituições do município de V. N. Famalicão, que possuem uma coleção bastante exemplar de como o documento gráfico se pode tornar numa metáfora de intervenção cidadã.
Feito este levantamento, procedeu-se a uma primeira seleção de fontes e referências bibliográficas, artigos de revistas e da imprensa local e outras referências, relacionadas direta ou indiretamente com as áreas da cidadania e património digital que sugeriam poder dar uma perspetiva global e compreensível da realidade, no que respeita ao domínio do património arquivístico, tendo sido realizado uma revisão bibliográfica.
Resultados/Discussão
Intervenção cidadã
Os panfletos são de autoria do famalicense José de Araújo Carvalho, conhecido por Carvalho de Travassos, que os idealizou, mandou imprimir e distribuir pela população, nos dias de feira em Vila Nova de Famalicão.
Esta personalidade encarou a tarefa de divulgação dos seus panfletos como uma missão importante na sua terra natal. Pretendeu alertar e educar os seus concidadãos desta localidade, através de pensamentos e de orientações morais impressos nos panfletos.
Uma nova dimensão de liberdade começa pela aprendizagem do ser cidadão, com a participação direta ou indireta na res publica, com a intervenção cívica, ativa e polémica em várias manifestações como agente do novo corpo cívico (Vargues, 1994). Assim, o autor dos panfletos pretendeu protestar contra qualquer abuso de que foi vítima (um roubo, uma injustiça) e castigar os maus, assim como, afirmativamente cantar a virtude e estimular o sentimento patriótico.
Os panfletos tornaram-se objetos de discussão pública e de reflexão, onde o autor manifestou as suas opiniões, ideias e sonhos que pretendeu que fossem geradores de mudança na sociedade. José de Araújo Carvalho recusou-se a ver os seus compatriotas como súbditos mas como cidadãos, não compreendeu o seu país como uma pátria, mas sim como um património (Soromenho-Marques, 1996).
O gosto pela intervenção social e pela manifestação pública foi um ato arrojado e excêntrico, não só por o autor viver numa vila de pequenas dimensões e num concelho ainda muito rural, na primeira metade do século XX, como foi um ato único não muito habitual na sua condição social, não sendo ele nenhum político, artista ou intelectual, facto comprovado na imprensa local (A Questão José de Araújo Carvalho, 3 março 1946).
As provas documentais são fundamentais na preservação da memória local, os arquivos e as bibliotecas não são apenas os lugares físicos (Henriques, 2017) mas também são a possibilidade de preservação digital dessas provas documentais.
Os documentos nos repositórios digitais famalicenses
Todos os documentos estão conservados e digitalizados nos repositórios digitais, nomeadamente, três panfletos no arquivo municipal que pertencem ao Fundo da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Vila Nova de Famalicão, oferecidos pelo autor dos panfletos a esta associação, como é documentado uma carta de 25 de janeiro de 1930. Podem ser consultados no repositório em linha (http://www.arquivoalbertosampaio.org/). Os documentos da biblioteca municipal, uma coleção de 24 panfletos, recolhidos e preservados pelo historiador local Vasco de Carvalho (1888-1961), encontram-se disponíveis na Biblioteca Digital Vasco de Carvalho (http://famalicaopub.bibliopolis.info/OPAC/search)
O suporte físico destes panfletos é o papel. Neles constam uma enumeração de pensamentos, por vezes sem ligação de conteúdo entre eles, mas ligadas entre si por travessões a separar as palavras-conceitos. A linguagem que é empregada tem caraterísticas telegráficas, utiliza-se o mínimo de palavras para passar a mensagem. Os erros ortográficos são recorrentes.
Todos os panfletos estão numerados, e em cada um, todas as frases, também, são numeradas. Os panfletos, em termos de dimensão de conteúdo possuem cinco frases e os maiores atingem as trezentas e dezoito. As dimensões físicas variam entre os 12 centímetros e 1 metro e 12 centímetros.
Todos os panfletos têm indicado o local, Travassos (na freguesia de Louro, V. N. de Famalicão), a hora, os minutos, o ano, o dia do mês, o mês, o dia da semana e o Santo do dia em que foram escritos. Quanto à indicação do impressor, quantidade e custo da impressão são mencionados para que nenhuma tipografia da região o enganasse com os orçamentos. Foram impressos em V. N. Famalicão ou na cidade do Porto. Utilizava a reimpressão dos panfletos, acrescentando dedicatórias e explicações. Veja-se o caso do folheto nº 1, datado de 1917 e reimpresso em 1936.
Os temas que tratou e que trabalhou são muito variados, por vezes, obscuros e misteriosos, outros de fácil compreensão. A título de exemplo, destacam-se (Alvim, 2006):
1. Observação de circunstâncias da sua vida: no folheto nº 414, refere a circunstância em que conheceu o Costa de Outiz; “Rio – onde noço gado bebia, Calça rota descalço – eu ia.”; “Preciso – de matar as pulgas”.
2. Estímulo do patriotismo: “Portugal – Govêrno – é bem nosso.”
3. Manifestação contra injustiças: no nº 418, precede as frases, um ofício que enviou à Sociedade Cooperativa do Vale do Este para protestar contra o atravessar de uma linha elétrica por cima dos seus prédios.
4. Apresentação de pensamentos, máximas: “Descobrir – verdades também é cavar.”
5. Apresentação de conselhos: “Trabalha bem – compra e vende.”; “Precisamos – mais fazer – bem melhor.”
6. Abordagem de questões filosóficas: “Humanos – nunca perde – com Humanos. Perdentes – perdem demais – do mundo.”; “Homem- parecer – não é ser. Homem – parecer – precisa mais ser.”
7. Utilização de imagens poéticas: “Bosque – Passarinhos – agua – Pinga – Travassos”
8. Citação de máximas bíblicas e de conteúdo religioso: “Deus-Jesus-Maria-José-exemplo”; “vida – agradeço a deus eterno”. Orações, antes da enumeração das frases – “Deus, Sinhor Pai, do mundo, tôdo bem.”
9. Apresentação de charadas e sentenças de pensamento oculto: “Deus – semeia pinheiros; galinhas – etc. – comios.”
10. Reflexão sobre as Grandes Guerras: “Como destruir a guerra???”; “Trabalhar – bens-guerra ce destroi”; “Homanos – homanizem – todos os barbaros.”
11. Elogio dos bombeiros: “Peço a Deus, mandar os bombeiros, apagar com amor, a separação”; “Ajudar os bombeiros a casar”.
Considerações finais
Ao longo do presente trabalho, procurou-se enquadrar um conjunto de documentos que a biblioteca e o arquivo do município de V.N. de Famalicão possuem nos seus repositórios digitais e que se destacam pelo seu valor documental e de interesse para a história da cidadania no concelho.
Revisitou-se e refletiu-se sobre o conceito de intervenção cidadã e sobre a importância histórica da preservação digital do património documental.
Procedeu-se ao entendimento histórico e à descrição documental dos panfletos de José de Araújo Carvalho, considerado um paradigma de intervenção social e de cidadania no concelho de V.N. de Famalicão, nos anos 20 a 40 do século XX.
Observou-se a importância do património arquivístico enquanto suporte da memória, das ações e decisões da vida do homem em sociedade, fatores determinantes da sua identidade local.
Referências
Alvim, L. (2006). Os Manifestos de Carvalho Travassos. Boletim Cultural da Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão. V.N. de Famalicão. ISSN 0871-3308. III série, nº2 (2006), p. 181-190. <URL: http://www.cm-vnfamalicao.pt/_boletim_cultura>.
Henriques, Maria de Lurdes da C. N. (2017). Património cultural: memória e ensino: o serviço educativo do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Lisboa: Universidade de Lisboa. Tese de doutoramento no ramo de História apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Disponível em: http://hdl.handle.net/10451/30187
A Questão José de Araújo Carvalho (3 março 1946). Estrela do Minho, ano 51, nº2625.
Soromenho- Marques, V. (1996). A era da cidadania. Mem Martins, Publicações Europa América.
Vargues, Isabel Maria G. N. (1994). A aprendizagem da Cidadania em Portugal: contributo para a definição da cultura política vintista (1820-1823). Lisboa: Universidade de Coimbra. Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1994.