Clube K com "Liberdade de Ler: projeto da Biblioteca Pública Regional da Madeira em parceria com o Estabelecimento Prisional do Funchal

Autores

  • Ana Figueira Biblioteca Pública Regional da Madeira

Palavras-chave:

Bibliotecas de prisões, cidadania, literacia, promoção da leitura

Resumo

Liberdade de Ler é um projeto que nasceu em julho de 2011, fruto da iniciativa de um recluso do Estabelecimento Prisional do Funchal (EPF) que, através de uma carta dirigida à Biblioteca Pública Regional da Madeira (BPR), solicitou uma oferta de livros para enriquecimento do acervo da biblioteca do setor k (setor específico do EPF). Este setor é constituído por 36 indivíduos do sexo masculino, com idades entre os 18 e os 55 anos, com uma escolaridade média de 1º ciclo, cuja natureza do crime varia entre a agressão sexual, homicídio e tráfico de droga.

O espaço destinado à biblioteca era amplo, mas vazio, onde os livros estavam em dois armários de madeira, sem livre acesso. Era portanto um espaço pouco convidativo.

Os dados fornecidos pelo EPF indicaram que os hábitos de leitura neste setor eram quase inexistentes, à exceção de dois ou três reclusos, que concluíram o ensino secundário ou com formação superior. A baixa escolaridade, a desmotivação e o próprio acervo existente não atraíam reclusos à biblioteca.

A BPR já há muito tencionava colmatar a lacuna de levar os seus serviços à população reclusa. O pedido efetuado veio ao encontro dessa necessidade, de acordo com o que está previsto no manifesto da UNESCO: “Os serviços da biblioteca pública devem ser oferecidos com base na igualdade de acesso para todos, sem distinção de idade, raça, sexo, religião, nacionalidade, língua ou condição social. Serviços e materiais específicos devem ser postos à disposição dos utilizadores que, por qualquer razão, não possam usar os serviços e os materiais correntes, como por exemplo minorias linguísticas, pessoas deficientes, hospitalizadas ou reclusas”.

A resposta por parte da BPR foi imediata e logo se fez chegar ao Estabelecimento Prisional do Funchal, especificamente à biblioteca do setor k, uma oferta de cerca de 140 livros de várias áreas temáticas.

Da oferta inicial de livros rapidamente surgiu a necessidade de implementar um projeto que foi denominado de Liberdade de Ler, que abrangesse a organização do espaço da biblioteca, oferta de mobiliário, um computador com acesso ao catálogo bibliográfico da BPR, inventariação dos títulos existentes e a sua correta organização e recuperação.

O seu grande objetivo seria promover o livro e a leitura e também estabelecer pontes com diversas áreas de atuação humana, trabalhando a reeducação e a reintegração social dos reclusos.

Num primeiro momento foi organizado o espaço da biblioteca e o seu acervo documental. A organização das estantes, mobiliário, expositores com informação diversa, computador e cartazes a colorir as paredes, fizeram com aquela sala se transformasse num espaço apelativo e convidativo a estar, ler um livro, um jornal. Tornou-se num local onde apetece estar e passar algum tempo entre os livros, de tal forma que carinhosamente foi apelidado de “clube k”.

No que diz respeito a recursos humanos a coordenação do projeto ficou a cargo da técnica superior responsável pelo Serviço Educativo e Dinamização Cultural (SEDC).

A dinâmica gerada pela natureza do projeto e especialmente a adesão por parte dos reclusos no apoio à organização do espaço foi enorme e depressa se sentiu a necessidade de uma nova etapa, de criar atividades. Encontraram-se então formas de trabalhar o livro e a leitura, mas também de abordar diversas temáticas e foram criadas parcerias com outras instituições, abrindo assim as “portas” do (EPF) à comunidade, através de voluntários e também de outras instituições públicas e/ou privadas.

Nesta fase do projeto, a biblioteca do clube k já se encontra em pleno funcionamento e gera um eco bastante positivo entre reclusos, guardas prisionais e demais pessoal do EPF. A possibilidade de consultar livros devidamente organizados, de mexer nas estantes, de tocar nos livros, assim como a oferta de títulos atuais e o empréstimo institucional de livros, por parte da BPR, estimulou a procura deste espaço e a requisição de livros, sendo notória a circulação de livros entre os guardas prisionais e a presença de livros nas celas. Nos placards da biblioteca é dado um destaque mensal aos 3 leitores mais assíduos e são afixadas as opiniões dos reclusos, nomeadamente, “ler permite viajar através dos livros, conhecer histórias, cria a possibilidade de novos recomeços…”; “o livro é um amigo, é uma forma de estar em liberdade”; “é uma forma de ocupar o tempo e manter afastado pensamentos negativos…”.

No que diz respeito à dinamização de atividades com os reclusos é de destacar o contar de histórias realizado por uma voluntária da BPR, com formação em Animação Sociocultural. É surpreendente o gosto pelas histórias/contos simples, infantis contados e dinamizados da mesma forma que se faz com crianças.

A discussão que se gera em torno da “moral” das histórias - valores como a amizade, a partilha, a confiança, o companheirismo e a liberdade são temas do agrado de todos e permite a partilha de experiências, de opiniões.

Uma reportagem do Jornal “Público” (20-01-2012) sobre o clube k e o projeto Liberdade de Ler, abordando as caraterísticas específicas daquele setor, assim como a importância deste projeto no quotidiano dos reclusos, despoletou a atenção da sociedade para esta realidade existente “dentro de muros” e a solicitação de parcerias com voluntários e instituições depressa teve um eco positivo. A equipa do projeto passou a reunir, para além da coordenadora e da voluntária, cinco parceiros – Arquivo Regional da Madeira, Museu Quinta das Cruzes, Clube Sport Marítimo, Centro de Estudos de História do Atlântico e Escola Secundária Francisco Franco.

Horas do conto, visita de escritores, oferta de livros, atividades com os jogadores do Club Sport Marítimo e os reclusos, pequenos cursos de encadernação de jornais e livros têm feito das rotinas do clube k, momentos de partilha, aprendizagem, aquisição de competências e também de ocupação de tempos livres, tornando-os mais “leves”, menos “agitados”, mais “motivados” opinião recolhida junto dos Guardas Prisionais e do Técnico Superior de Reeducação que é o elo de ligação entre os reclusos e a BPR.

Com o apoio do Arquivo Regional da Madeira (ARM) foi possível explorar um livro e perceber a sua constituição e a possibilidade de criar um, através do serviço de preservação e restauro. A visita de escritores e os seus relatos de como nasce um livro e todas as técnicas necessárias para a sua elaboração, incutiu e despertou o interesse e a possibilidade de os próprios reclusos poderem ser autores de uma história, a sua história.

Outra das atividades está a ser desenvolvida em parceria com a Escola Francisco Franco e será o projeto final da disciplina de área projeto. Já foi elaborado o perfil dos reclusos e questionado como gostariam de ver a biblioteca transformada através de um trabalho artístico nas paredes e corredores de acesso à biblioteca. Será portanto um trabalho criativo, cuja parte teórica e de contextualização está a ser feita pelos alunos e a parte prática será feita por alunos, professores, reclusos, guardas prisionais e demais técnicos envolvidos.

A 20 de março de 2012 o projeto Liberdade de Ler foi oficializado através da assinatura de um protocolo entre a Direção-Geral dos Serviços Prisionais e a Direção Regional dos Assuntos Culturais, onde ficou expresso “que o livro e a prática da leitura constituem mecanismos relevantes no processo de reinserção social dos reclusos, através da aquisição, por seu intermédio, de competências cognitivas, culturais e cívicas essenciais ao desenvolvimento de uma atitude responsável e digna em contexto de sociedade”.

Em abril de 2012 o projeto estendeu-se aos restantes reclusos, cerca de 248 do sexo masculino e 12 do sexo feminino, com uma média de 37 anos de idade e uma escolaridade média de 2º ciclo do ensino básico.

Num primeiro momento está a ser levada a cabo a organização do espaço da biblioteca geral do setor comum e seu acervo documental.

Entretanto, tem surgido um interesse crescente por parte da comunicação social regional e nacional, relativamente ao setor k e ao projeto Liberdade de Ler.

A rotina do clube k alterou-se e o quotidiano que antes se fazia entre jogos de cartas, damas e dominó, ou simplesmente pelo convívio no pátio entre reclusos, agora divide-se entre a frequência às aulas, a ida à biblioteca e a participação nas diversas atividades existentes. Reabilitar, consciencializar e reinserir é a política da Biblioteca Pública Regional da Madeira e da Direção-Geral dos Serviços Prisionais.

Biografia Autor

Ana Figueira, Biblioteca Pública Regional da Madeira

Licenciatura em Comunicação e Relações Públicas pelo Instituto Politécnico da Guarda. Pós-Graduação em Ciências Documentais pela Universidade da Madeira.
Funções que desempenha: Responsável pelo Serviço Educativo da Biblioteca Pública Regional da Madeira.

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Publicado

2012-10-18

Edição

Secção

Comunicação: 5. Valor social das bibliotecas e arquivos